domingo, 29 de março de 2009

o suspiro de uma cadela


6. Era tão bom que tivéssemos todos, um dono que provesse as nossas necessidades, que sorrisse benevolente quando das nossas faltas e, nos afagasse o pêlo do lombo nos momentos de desilusão!

Foi só uma vez na minha vida que tive alguém a quem me apeteceu chamar dono!
No fim de um dia chato, quente e abafado, que ainda recordo a dificuldade que tinha em respirar e mexer, procurei um lugar fresco e encontrei-o, debaixo de um arco, numa viela esconsa e escura. Tinha a minha língua de fora, arquejava, quando de repente, vi na à minha frente, duas mãos encardidas com uma tigela rachada cheia de água. Bebi sofregamente todo o líquido e de novo, essas mãos me voltaram a pôr uma quantidade igual da minha salvação. Quando me senti saciada, levantei os olhos e vi um velho barbado e sujo, tresandando o cheiro enjoativo dos humanos. – “Pobre cadelinha! Tens muita sede, não tens? Toma, toma que também és filha de Deus.” _ Embora não tivesse conhecido o meu pai, creio que não deve ser o tal Deus, por acaso até nem sei se ele tinha algum nome, não o conheci! Nunca percebi muito bem, quem é esse deus que os homens passam a vida a falar, mas naquele momento, acreditei que devia ser alguém muito bom pois, em seu nome, o velho me oferecia água e me salvava. Filha de Deus! Parece que ainda o estou a ouvir!
Deixei que o velho me afagasse porque ele parecia feliz com isso, e sinceramente, também não me senti nada mal! O homem falava, falava comigo num palavreado que não percebi, mas deixei-o falar porque me pareceu que falava mais para si do que para mim. Depois disso, chamou-me para eu ir com ele, acompanhei-o à porta de uma taberna mas não entrei. Ele passado um bocadinho, veio até à porta trazer uns “restozinhos” para eu me entreter. Senti-me na obrigação de o seguir quando ele, trôpego, saiu de lá e caminhou pelas vielas murmurando sem parar. Ele à frente e eu atrás, nada de confusões porque ainda não o conhecia bem! Por fim deitou-se num banco de pedra e eu também me deitei por debaixo dele. Falava, acariciava-me, falava, julgo que mesmo a dormir ele falava!
Tomei o hábito de o seguir, já lhe conhecia o cheiro e o passo arrastado, até que um dia as coisas mudaram. Talvez nem tivesse passado uma semana, pois havia um dia certo que eu costumava ir às traseiras de um restaurante onde todos os cães se encontravam para rilhar os ossos e pôr a conversa em dia e ainda, não lhes falara do meu novo companheiro. Seguia-o como de costume naquele dia, primeiro percorremos a avenida, depois atravessaríamos a rua e por fim esgueirar-nos-íamos até à rua do arco onde nos tínhamos encontrado pela primeira vez se não acontecesse o que aconteceu. O trânsito parecia louco e o velho arriscou atravessar a rua apesar da insegurança do seu andar. Ainda lhe puxei com os dentes uma das pernas, mas ele sacudiu-me rindo. Recuei sem saber porquê e foi então que ouvi um barulho horrível que me fez estremecer. Ouvi gritos e apesar de meio desorientada corri para o corpo do velho empapado em sangue, em pouco tempo percebi que estava rodeada por uma multidão de pessoas e que elas faziam comentários sobre mim e o velho. Foi então que percebi que perdera num instante, aquele a quem um dia poderia chamar dono. Gani e uivei como nunca o fizera, lambi-lhe as mãos e o rosto como se antes de ele partir pudesse levar consigo a minha gratidão. Pareceu-me que ele se erguia, agora mais limpo, quase brilhante, que falava uma vez mais comigo, até lhe ladrei com satisfação, mas deixei de o ver quase logo quando um carro a apitar se aproximou e de lá saíram uns homens que levaram o corpo. Atirei-me contra a parede de pernas e corri sem parar até à “nossa rua”, deitei-me debaixo do banco de pedra e pareceu-me, uma vez mais, que as suas mãos me tocavam.
Uma cadela não costuma sorrir por isso dei ao rabo com quanta energia tinha. Durante muito tempo, foi aquele o lugar preferido para dormir as minhas noites. Ainda hoje, quando me sinto mais só, percorro a cidade para me encontrar sob aquele banco e, às vezes desejo um dia de calor sufocante e umas mãos sujas a darem água numa tigela rachada.

Histórias de mim para ti ou histórias mágicas de reais acontecimentos


A andorinha



Um dia, uma andorinha negra, solitária, voou, voou muito alto.
Deitou-se numa nuvem cor-de-rosa, uma nuvem tapete, bem esticada, de malhas ralinhas que deixavam ver tudo cá em baixo. Como via bem as suas irmãs a esvoaçarem de um lado para o outro, levando alimento para os seus bebés-andorinhas!
A negra avezinha rio, enrolou-se na nuvem fazendo dela um rolinho de algodão e rebolou, rebolou pela estrada azul. Quando se cansou daquela brincadeira, foi buscar outros pedaços de nuvens e construiu um castelo muito grande, muito grande!
Depois, desceu até junto das suas amigas e levou-as com ela até ao castelo. Oh! Como se divertiram! Como nadaram na espuma de todas as cores! Zumba que zumba, as andorinhas pulavam, nem repararam que o Sol se fora embora e a Lua já sorria para elas.
De repente, uma das andorinhas-mãe. Lembrou-se dos seus filhos e, aos guinchos, alertou as companheiras que, aos trambolhões, desceram para os seus ninhos. Encontraram as suas crias cheias de fome e, embora estivessem cansadas, levaram a noite inteira a procurar comida para dar aos seus filhos.
De manhã, ao sol nascente, quando os olhos se levantaram ao céu, reparam num ponto negro que saltava sem parar numa nuvem esbranquiçada. Mas o ponto, foi aumentando, aumentando, até cair junto delas, a andorinha negra solitária com o bico entreaberto num sorriso infinito.

Mais uma semana



Mais uma semana e o ramerrame dos dias a impedirem-me de ser mais assídua aqui no blog.
Dediquei dois dias para ir às escolas no âmbito do mês da leitura, faz bem voltar àqueles espaços tão ligados a mim, faz bem voltar a falar e ler para as crianças. Para elas basta um pouco de atenção e um sorriso para se abrirem e corresponderem, mas fico triste com o desânimo que impera no todo que se chama escola. Principalmente o ar cansado e desmoralizado que as minhas colegas trazem estampado no rosto e a sua necessidade de desabafarem.
Sinto que a escola por que tanto lutei está a morrer aos poucos. O domínio político-administrativo sobre elas coarcta os laços e as ideias transformando o professor num funcionário sem asas. Falta-lhes aquela chama que os fazia discutir, de um modo convicto, acerca da coisa comum, a escola em que passavam os dias e as propostas pedagógicas que defendiam.
As crianças hoje estão mais sós. Não no sentido físico, nesse até parece que estão atrelados aos adultos, mas no sentido da sua autonomia, da sua criatividade e da sua comunicabilidade! Tudo é programado, testado, registado como se a vida real fosse assim. Que será delas no futuro? Quando tiverem que se desenvencilharem sozinhas? Sem ninguém para lhes servir o pacote de soluções? Dá ideia que se está a preparar uma geração para servir, sem ser capaz de decidir! Isto não tem nada a ver com teorias de conspiração, mas o medo inflado nelas vai torná-las dóceis, obedientes, moles… tipo animais domésticos! As mais rebeldes tornar-se-ão agressivas, paranóicas ou tiranas.
É isto que a sociedade deseja? Um poder global onde uma elite diminuta controle a grande maioria colonizada? E os mais velhos que se habituaram à liberdade e à acção? Serão, no futuro, considerados agitadores? Personas não gratas? Que lhes farão? Eu por mim já acredito ter um dia que passar à clandestinidade! Se for preciso, morrerei pela liberdade e pela razão, acho que não tenho medo, porque sei que outros como eu continuaremos a lutar por ela. E, como diz o povo, não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe!

Telmo, o marujo

Catarina, a incorruptível

Atravessámos um túnel nebuloso que desembocava na escuridão da noite. Fogos-fátuos elevavam-se no ar contrastando com o negro da noite.
Planámos sobre o subúrbio da cidade onde a vizinhança de uma lixeira emprestava um fedor intenso que entrou pelo meu nariz e quase me fez sufocar. Ouviam-se gemidos, gritos e imprecações que magoavam a alma, tudo era desolação, miséria e tristeza. Nunca havia presenciado tanta violência nem tanto sofrimento, as trevas ocultavam os rostos mas eu sentia as suas presenças através da sua respiração ofegante junto de mim. Mãos invisíveis agarravam e arrancavam em desespero as minhas vestes imateriais.
Vultos passavam por mim como fantasmas, vagueando sem destino e desaparecendo numa espécie de becos. Que poderia eu aprender em tal mundo?
Catarina apontou-me um recanto e mostrou-me uma roda de homens em volta de um velho agonizante. Este, estrebuchava com febre e dores, dos seus lábios corria um fio de sangue pastoso e escuro e, os seus olhos, se bem que abertos, estavam secos e cegos!
Com a nossa aproximação, os homens apartaram-se alguns desapareceram, outros permaneceram num misto de curiosidade e desafio. Em todos eles, havia marcas dos seus percursos, golpes, nódoas cicatrizes, e os seus olhares frios deixavam perceber os ódios e rancores. A seguidora não lhes deu demasiada importância, abeirou-se do velho e impôs as mãos sobre ele iniciando o ritual de desprendimento. Apesar der fraco, ele debatia-se agarrando-se ainda à mísera vida e tentava afastar Catarina. Não se lhe reconhecia qualquer sentimento de contrição, pelo contrário, havia como que uma resistência superior às suas próprias forças.
Apesar disso, Catarina persistia em emitir as energias manifestadas em cor, tentando com isso transmitir-lhe alguma paz. Aquela era uma luta do bem contra o mal e, estava a decorrer ante os meus olhos, para que percebesse quão importante era a tarefa de Catarina. Nessa altura tive consciência do embate das forças negativas sobre ela e então, aproximei-me mais e resolvi colaborar fazendo o possível para pôr em prática tudo o que tinha aprendido. Procurei dentro do meu peito os mais amorosos sentimentos, centrei-me no mesmo objectivo de Catarina e, lancei para fora o que de melhor tinha em mim. Um brado enorme ecoou pelo subúrbio, já fora do seu corpo, o velho recuperou as forças e juntou-se à horda e preparava-se para se vingar em nós.
A Seguidora deu-me a mão serenamente e eu, qual cavaleiro defendendo sua dama, enfrentei-os com o ar firme de quem está convicto dos seus actos. Num átomo de tempo foi determinada a vitória e a derrota e eles caíram de joelhos, prostrados e chorando como crianças arrependidas. Algumas silhuetas luminosas surgiram entretanto e encaminharam aqueles homens para um lugar diferente. Suspirei de alivio e compreendi qual a cruzada de Catarina.

domingo, 22 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


5. Não há volumes. Só superfícies no reflexo das nossas relações. E, apesar disso, bastava que eu ou tu, nos projectássemos um pouco para além de nós!

Esta tem sido, toda a vida, a minha política. Porém, na maior parte das vezes, só consigo arranhar a polidez dos outros com a minha tacteante ternura. E, quantas? Quantas vezes se aproveitam dela num breve movimento para me roubarem?! Penso reconhecer a protuberância dos outros, mas a minha mola está demasiado lassa pelo hábito de me esticar e acabo por não me encolher…
Foi há três dias que encontrei este lugar, recolhia a minha necessidade de me isolar do vai e vem da cidade. Nunca gostei muito de praia, mas nesta época, o areal está húmido e encontra-se quase deserto. Por isso, não é desagradável.
Acho que andava a precisar de sentir novos cheiros, espojar-me em espaços abertos e, coçar-me, coçar-me como poucas vezes o faço, nestes espinheiros que crescem nas dunas. Além disso, este marulhar repetido do mar, embala-me, apaga-me os contornos mais ásperos do pensamento e ajudam-me a mergulhar fundo, bem fundo do fundo de mim mesma.
Estar aqui, é estar no vestíbulo da eternidade, prepara-nos a entrada, sem a agudeza dos opostos. Uma cadela como eu, já pouco mais pode esperar do que um terminar sereno e, precisa sem dúvidas, de se treinar para a solidão.
A perversidade que nos mantém presos à realidade é demasiado objectiva, acredito que passei anónima pela vida, isso incomoda-me! Talvez porque sinto cada vez mais curta e apertada a trela que me segura ao mundo, talvez…
Quando mergulho na minha história, curiosamente nunca a vejo igual. Encontro dezenas, senão centenas de outros cães e cadelas que para além do cheiro, não me deixaram mais nada. São, como hei-de dizer, ornamentos de memória!
Baixo o focinho por entre as patas na areia da beira-mar e deixo que a espuma das ondas desmaiadas mo beijem.
De olhos abertos, cego-me para o que está próximo e projecto-me para além do horizonte.
Imagino – um cão também pode ter imaginação! – Vultos caninos que me parecem familiares, acenam-me, chamam-me, apelam ao meu corpo mole. Um deles faz-me lembrar a minha mãe, uma cadela tão magra como eu, que vagueava nas ruas e generosamente servia os machos das redondezas. Tinha fama de mansa, só quando tinha crias se arrebitava toda na fúria de as proteger. Não faço ideia, em qual das ninhadas nasci, sei que houve muitas antes da minha e que depois de eu a deixar, continuou a gerá-las.
Lembro-me apenas que éramos quatro. Três fêmeas e um macho. Todos amarelos, híbridos de um galgo. O nosso tamanho em breve superou o dela, o que claramente, dificultava a disciplina e o respeito entre nós. O meu irmão em breve perdeu o domínio porque cegou, não me lembro porquê. Sei apenas que deambulava sem segurança e um dia, desapareceu para sempre. O conflito entre nós, as cadelas, tornava-se cada vez maior, principalmente quando chegava a época do cio, cada uma de nós queria o melhor macho, hoje já nem sei bem para quê! Mas não durou muito essa luta, pois cada uma seguiu o seu destino. Nem sequer nos despedimos umas das outras, partimos, simplesmente!
A minha mãe lá ficou no seu território, não sei por quanto tempo. Talvez os laços familiares entre cães não sejam assim tão apertados! Eu procurava mais que um breve lamber ou mordiscadela. A maioria dos cães que se cruzaram comigo aproveitou bem essa ânsia de afecto, aproveitavam o melhor que podiam e logo que se sentiam satisfeitos, afastavam-se apagando todos os episódios do passado recente. Confesso, que me desiludi, passei então a lutar pelos direitos dos outros, a servir de confidente, a socorrer os menos capazes, a lamber as feridas de uns quantos. Alguns aproveitavam a minha acção para em seguida me tentarem dominar, roubar ou magoar, outros, vá lá, afastavam-se e esqueciam-me.
Por vezes rebentava dentro de mim uma revolta tão grande que passava as noites a uivar, a morder o meu próprio rabo. Agora, quando penso nisso, e estou no epílogo da minha passagem por aqui, já não faço caso, vivo mais comigo mesmo, se tiver que ajudar um cachorro ou um cão perdido do dono, é porque me faz melhor a mim do que a eles. Já não estranho as partidas precipitadas, nem os silêncios comprometidos, fico até admirada quando algum se lembra de agradecer.
Hoje, quando me projecto tenho a certeza que é um reflexo instintivo que me impede a indiferença perante os que me rodeiam, assim, defendo a minha existência de um sono sem sonhos e resguardo-me das sombras.

O que nos faz ser felizes




É quando existe a suspensão temporária das nossas necessidades básicas que nos apercebemos que, com a sua satisfação, obtemos os maiores prazeres. E são os prazeres mais elementares que equilibram o todo que somos; física, intelectual e emocionalmente.
Não precisamos de ir de aventura em aventura procurar experiências num hedonismo desesperado, basta repararmos o que está em falta.
O sono, a alimentação, a higiene, a drenagem os resíduos corporais, a respiração, a recuperação dos sentidos que por qualquer motivo se viram impedidos de funcionar em plenitude, são necessidades que ao verem-se satisfeitas nos fazem encantar com a vida. Significa isso que a vida podia ser muito mais fácil e tranquila.
Poder-se-á dizer que isso é limitar a existência à animalidade. Até pode ser mas, o que somos afinal? Ao invés de nos sentirmos ofendidos com a nossa condição animal, devíamos congratularmo-nos com isso. Talvez fosse uma boa maneira de nos sentirmos irmãos dos restantes seres vivos!... E desse modo, respeitarmos mais o mundo.
Um dos grandes erros da humanidade têm sido o facto de nos termos desconectado da Natureza, achamos que somos uma espécie privilegiada. E, uma das razões que mais tem contribuído para tal é a ideia dada por algumas religiosas, principalmente as de raiz judaica. Logo no livro do Génesis, surge o fundamento: Deus cria o Mundo para servir o Homem e para ser controlado por Ele.
É portanto este divórcio que nos faz sentir amputados, o sentimento de perca e a necessidade de procura. Nas religiões animistas de alguns povos antigos, o Homem era um homem, um ser com iguais responsabilidades e direitos de existir na Terra-Mãe, havia uma harmonia entre si e o mundo que o rodeava. O que não quer dizer que não houvesse gente infeliz. Está claro que sim, porque os homens mesmo que não dominem a Natureza têm necessidade de se dominarem entre si. No entanto, julgo que não sentiriam tão pungentemente esta necessidade de procurar prazer. Viviam-no e não o questionavam!
A nossa História tem-se debatido entre desejar ser feliz e o medo de o ser. É a nossa insatisfação que nos faz ser infelizes e, afinal é só prendermo-nos ao fio que nos liga aos outros seres!
Portanto, aprendam a ser felizes!

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O Mago

Era uma vez um mago, grande, do tamanho de uma montanha, cujas ravinas deixavam escorrer um rio de barbas brancas. Era um mago, com um coração tão duro e frio quanto o granito dessa montanha.
Este mago tinha um castelo de cor cinzenta, no meio de rochedos cinzentos e, vivia acompanhado de aves cinzentas, do mesmo cinzento da lama que cobria o chão e que os seus pés pisavam.
Num dia de Inverno, o Sol despertou mais cedo e as aves, acordando sobressaltadas, tão atarantadas ficaram que voaram para além de tudo o que era cinzento.
Ao planar nos territórios vizinhos, descobriram as cores salpicadas em todos os campos. Curiosas, debicaram as sementes e na pressa de regressarem, trouxeram outras por entre as suas penas. Pelo que ao chegarem ao território do mago, as deixaram cair sem querer na terra ávida de vida.
Quando a primavera chegou, o mago rabugento, encostou-se ao parapeito da janela e viu um arco-íris espalhado por todo lado. Ao contrário do que possam pensar, o mago não sorriu nem se encantou, nem felicitou a Natureza, ficou tão irado que deixou o seu coração estalar e morreu ali mesmo.
É por isso que hoje, por entre o verde e as flores de uma floresta, ainda se vêem, grandes blocos de granito espalhados pelo chão.

Telmo, o marujo

Catarina, a incorruptível

Embora consciente do meu estado adulto, continuava a sentir-me incomodado por ter que abarca dois mundos diferentes; aquele de onde viera para onde iria em breve e, este no qual vivia temporariamente e que me dera o sentido de serviço e o conhecimento.
Quer quisesse, quer não, sentir-me-ia sempre deslocado em ambos. Tinha a certeza que, a liberdade e a paz que usufruía naquele momento, estavam ameaçadas pelo futuro cada vez mais próximo. Esta precariedade provocava uma ansiedade muito grande.
Portanto, aproveitava todo o meu tempo para acompanhar os Seguidores em suas tarefas, eram a minha família e eu queria estar o mais possível com eles.
Crescera por dentro e por fora, via a infância de uma forma remota mas sentia que jamais seria suficientemente confiante para me integrar em qualquer dos mundos.
Era frequente deambular pelo jardim meditando sobre o espaço que ocuparia no projecto dos Seguidores. A via mais estranha era a da Fé. Talvez por isso, um dia me enchi de coragem e procurei Catarina, também chamada a incorruptível.
Não tinha a beleza angélica de Gisela, a simpatia de Helena, nem o jeito maternal de Irene. À primeira vista não passava de uma mulher comum e discreta, de estatura média e traços vulgares, no entanto, esse aparente ar apagado acabou por me despertar a curiosidade.
Encontrei-a no lugar habitual, por cima do dormitório dos colaboradores. Era uma cela exígua pintada de branco. O único adereço para além da cama, era um tapete de lã colorida. De resto, era o despojamento absoluto.
Deixou-me ficar ali à porta, de pé, enquanto se mantinha de costas olhando um ponto vago para além da fresta que servia de janela. Eu sabia que ela dera pela minha presença e que ouvira a minha saudação, fiquei então aguardando respeitosamente que me dirigisse a palavra.
Quando me sentiu mais tranquilo convidou-me a entrar e a sentar-me junto dela no tapete.
- Seguidora, há muito que persigo esta dúvida: que nuance da Fé segues tu? Vejo-te com pouca frequência, vives praticamente isolada, como alcanças os teus objectivos?
- O que me está destinado fica do outro lado, daquele que oculta na noite… mas, reparando em ti vejo que já te encontras preparado para compreenderes. Vem comigo.
Olhou fixamente para mim e senti um impacto violento, quase doloroso. Soltei-me do corpo e logo me encontrei frente ao outro eu de Catarina. Durante algum tempo senti-me agoniado e numa vertigem, vi-me embrulhado num turbilhão de sensações. Apesar disso não senti medo porque Catarina estava a meu lado.








domingo, 15 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


4. Valeu-me estar longe quando tudo aconteceu. Imagine-se que eu previa o que se passou!

Foi mais um daqueles tropeços que nos desviam da linha do destino. Nós a pensarmos que vamos bem por um caminho torto e, de repente, atravessa-se uma linha recta que nos leva serpenteantes para um outro final! Eu explico. Claro que não vos ia aqui atiçar a curiosidade por coisa nenhuma, por acaso até tinha graça! Fazia lembrar aqueles prestigiadores de vulgaridades que acabam por se esquecer dos coelhos na cartola!
Bom, o caso foi assim: andava eu à procura de umas côdeas sem quaisquer resultados, quando me se depara à frente um enorme alazão a arreganhar o dente e a fazer alarde do seu tamanho. Confesso que meti a cauda entre as pernas e fiquei tremelicante. No entanto ergui o focinho e fiz valer a minha veneranda idade rosnando cavamente. Durante algum tempo medimos as forças e a coragem mas, mal tínhamos começado o confronto quando um enorme estardalhaço cuspindo ferro e fogo, rebentou de dentro do casarão amarelo que fica ao pé do chafariz, onde costumo dormir nos dias de chuva. A confusão demoveu-nos de qualquer ajuste de contas e, obrigou-nos a refugiar por entre as rodas de um camião que ali se encontrava parado.
Passado um bocado a rua era um ror de gente, de carros a apitar, de jactos de água, de cinzas, de gemidos, de madeira queimada e de pedras caindo.
Eu e o meu inesperado companheiro, resolvemos safar-nos dali para fora. Barrigas roçando a calçada, orelhas coladas ao focinho e, ala, que se faz tarde! Logo que apanhámos uma ruela mais desimpedida, tratámos de correr. Corremos, corremos tanto que, acabámos por ir parar ao miradouro de um outro bairro antigo. Felizmente, charcos não faltavam, por isso bebemos gulosamente toda a água que pudemos. Saltámos para a relva dos jardins e espojamo-nos descontraidamente.
Tempo depois, não era mais dois desconhecidos e entrámos em confidências. Ele começou por pedir desculpa pela maneira como me tratara, não era por mal, era o jeito dele! Como fora criado no campo, num lugar onde a enormidade do número de cães vadios era tanta, a sua natureza levava-o ter que mostrar constantemente a mostrar-se forte e dominador. Claro que já tinha ouvido falar que com o sexo feminino, devia ser mais gentil, mas a verdade, é que se esquecia sempre desse pormenor, desses aprumos de civilidade. Era o hábito! Até porque não costumava fazer mal nem a uma mosca. As cadelas da sua terra natal não eram delicadas, eram cadelas de luta e que muitas vezes, mordiam à descarada. Também contou que fora criado ao Deus dará, aprendera as leis da vida e da sobrevivência à sua custa.
Era quase um cachorro, a impetuosidade própria da sua idade estava ali à vista: num momento agressivo, noutro, trémulo e inseguro. Não lhe fiz muitas perguntas, só as suficientes para que ele sentisse que podia falar à vontade. E ele via-se, coitado, que tinha necessidade de botar cá para fora toda aquela angústia que o estrangulava. É sempre assim! É muito mais fácil despirmo-nos das nossas máscaras com os estranhos do que com os próximos. Portanto, ele falou, parecia que era só a sua voz que ele queria ouvir, e eu, queda, deixava escapar de vez em quando um suspiro de verdadeira compaixão para que ele sentisse de facto que o estava ouvir.
A noite foi caindo aos poucos, àquela hora, com a luz mortiça, os estragos da minha idade tornavam-se quase invisíveis. Aproveitei também para esvaziar os meus pesos e confessar todas aquelas “coisinhas” que borboleteiam no na nossa consciência.
Cavalheirescamente e muito longe do que eu pudesse acreditar, o alazão acabou por se mostrar atento, sério, quase reverente para comigo, não me intimidei e, cá para nós, fez-me sentir um certo orgulho!
Já os gatos andavam em plena caçada e a noite se fechava, se sobressaltava com os ruídos sem nome, quando resolvemos procurar abrigo. Daí a pouco o orvalho frio da madrugada seria tanto que se transformaria numa capa branca com que cobriria as ervas. Se isso acontecesse, o desconforto alteraria por certo a nossa disposição e quebrar-se-ia o encanto.
Vagueámos então em silêncio. Aquela parte da cidade era-me tão desconhecida para mim como para ele, só que eu tinha a vantagem de ser uma citadina enquanto ele, só agora começava a desvendar este mundo. Descobrimos finalmente uma casa desabitada e gradeada dentro do jardim público, nos fundos encontramos uma quantidade enorme de ferramentas humanas que nos atravancava um pouco o espaço. Descobri um canto menos atafulhado e aproveitamos umas sacas de serapilheira para nos deitarmos.
Daí a poucochinho ele pediu-me licença para sair um bocadinho. Não demorou nada, trouxe dois belos ratos gordos para a nossa ceia, acho que lhe sorri, dentelhei um pouco da refeição, mas como já não tenho a fome de outrora, deixei-lhe o resto que ele aproveitou. Via-se bem que estava habituado a comer mais, mas não voltou a sair.
Ajeitámo-nos para um sono reparador. Ele adormeceu logo e eu, fiquei ali a observá-lo. Reparei em todos os seus músculos que subiam e despiam ao ritmo da respiração. Não era raro que de tempos a tempos, ele não soltasse um rosnear entrecortado de palavras sem sentido. Experimentei a ternura. Há tanto tempo que a não sentia!... o seu cheiro forte de macho perturbou-me a memória, não era só desejo que eu sentia, era algo mais, quase um sentimento incestuoso. Afinal ele poderia ser qualquer um dos meus filhos. Alguns dos quais seriam bem mais velhos do que ele, filhos! Devem andar por aí esquecidos do meu ventre e das minhas tetas! Se calhar não fui uma grande mãe, mas pari-os, alimentei-os, a todos, sem um queixume. E nunca nenhum me morreu por falta de cuidados. Eles cresceram, partiram. Encontraram outros caminhos que não são forçosamente perpendiculares ao meu. De todos os que eu tive e ficaram neste mundo armadilhado, só sei de dois.
Um, encontrei-o aqui há uns tempos, esguio e magro como eu, trotando obediente ao lado do dono caçador, chagou-se a mim, farejou-me e depois lá foi, satisfeito com a sua vidinha. O outro, mora não muito longe daqui, é um belo cão! Muito parecido com o pai, troncudo e coberto de um pêlo sedoso e dourado. Mas o garbo com que a natureza o dotou, não tem reflexos na sua personalidade…passa a vida atrelado a uma mulher saltitante, cego na sua fidelidade. Está um pouco gordo demais, provavelmente com o excesso de comida que a dona lhe dá. É tão perdidamente dedicado que ao passar por mim, se encosta às pernas da dona como se temesse que eu me chegue a ele. Confesso que a principio essa atitude me magoou, mas agora, aceito e compreendo-o.
Assim, olhando este jovem que podia ser meu filho, sinto-o menos estranho que os meus próprios filhos, e tudo porque ontem entrei no domínio das emoções e sentimentos e, partilhei com ele, a novidade da confidência.
Ainda não era manhã clara e cheia quando alguém com estrondo abriu o casinhoto onde nos encontrávamos. As imprecações acordaram-nos em sobressalto e saímos daquele lugar. O meu companheiro ainda tentou refilar mas eu empurrei-o levemente com o focinho e avançamos pela estrada granulosa do jardim à nossa frente.
Parámos junto à ponte que estende uma das pontas ao campo e outra à cidade. Ficámos ali calados, cheirando-nos mutuamente sem ruído. Vi nele o desejo contido na timidez genuína dos jovens e, então percebi que devia, de alguma forma, agradecer os breves momentos de quase felicidade que ele me trouxera. Toquei-lhe com explícita intenção e encorajei-o a dar ao corpo a alegria. Ele tomou-me desajeitadamente, demasiado rápido para uma despedida, mas perfeitamente ajustável à pressa que sentia. Não me emocionei e fingi graciosamente que sim. Ele não reparou, acreditou que tinha dado o seu melhor. Até nem era mentira! Só que o melhor dele não passava de mediocridade para mim. No entanto, não era o meu prazer que eu queria, era antes a vontade de lhe dar uma recompensa pela sua dedicação.
No momento da sua actuação, ainda murmurou a possibilidade de ficar comigo mais alguns dias, eu disse-lhe que não, que o recordaria melhor assim, que fora feliz por o ter encontrado. Ele acreditou.
Primeiro, lentamente, depois com agilidade e rapidez, partiu correndo para o outro lado da ponte. Ainda fiquei ali vendo o seu vulto tornar-se invisível, acabei por me virar para a cidade e recolhi-me nas ruínas do casarão amarelo.
Já nada restava, senão o amontoado de pedras e lixo, mas abanei as orelhas e a minha cauda em sinal de reconhecimento e, mais tarde, procurei outro lugar de guarida onde pudesse, tranquilamente, meditar no resto dos meus dias.

Vaso de varanda


Que gozo! Que prazer! Os lírios e os narcisos que plantei no Outono, enfeitam e perfumam agora a minha varanda.
A ter antepassados agricultores, estes são longínquos. O único contacto que tive com esta área na minha infância foi com a minha avó paterna, com quem fui criada, com a quantidade de vasos no “cantinho” do terraço mas, o apelo é grande!
Gosto do cheiro da terra, principalmente depois de um dia quente e depois da rega ou de uma chuvada. Gosto de lhe sentir a textura, observar a gradação da cor e encanta-me a ideia de um dia vir a possuir um pedaço dela para cultivar.
Nascida e criada na capital, bem em frente do magnífico Tejo, há coisas que não se explicam, este interesse pelas coisas mas simples, as montanhas agrestes, os campos cultivados, os sólidos e esguios ciprestes ou, as quase humanas oliveiras.
O meu lado capricorniano revela-se aqui, quem sabe se numa vida anterior, a agricultura foi o meu modo de subsistência? Quando se semeia ou planta e se vê crescerem as primeiras hastes verdes, existe como que uma identificação, quase uma parábola de nós mesma. Revemo-nos nesses seres delicados que saem da escura consistência material para se mostrarem mais acima manifestando-se em cor e em cheiro. Procuramos a luz solar, inspiramos o ar e alimentamo-nos de água. Eis os quatro elementos básicos da nossa transformação com os quais nos identificamos de corpo e alma.
O mundo construído de paredes e estradas desaparece, o aqui e o agora é um acto de Natureza e é ela que nos indica os caminhos e as oportunidades.
Mesmo em miniatura, o milagre da vida repete-se num vaso de varanda!

Histórias de mim para ti ou Histórias mágicas de reais acontecimentos


O burro

Era uma vez um burro. Um burro que logo à nascença foi separado de sua mãe e levado para um circo.
No circo viviam outros burros como ele, um pouco mais velhos, mas todos espertos e habilidosos.
O burro da nossa história era mais inteligente do que esperto, vivo, alegre, mas tremendamente crítico em relação à vida que levava. Isso criava á sua volta um ambiente tanto de admiração como de indignação.
Ainda o seu pêlo negro de jovem o cobria e, já ele descobrira que para o seu dono lhe dar coisas boas, era preciso que ele obedecesse cegamente, mesmo que não fosse essa a sua vontade! E também percebeu que as suas habilidades sobravam quase sempre porque o número era reduzido e os outros tinham também que trabalhar para que o tratador fosse reconhecido pelo público.
Na sua irreverência, provocava os seus companheiros, adorava escoicinhar para o ar ou fugir para os prados, gostava de se sentir solto para poder olhar os regatos de águas claras, cheirar as flores rasteiras ou simplesmente, trotar sem música e sem ordenança.
Um dia, o burro descobriu que o seu velho tratador se ia embora. Não gostava muito dele, mas era o único senhor que tivera e, por isso, ficou com pena quando o viu partir.
Os donos do circo retiram os burros do espectáculo e venderam-nos a quem os quis na feira de gado, ganhando com isso uma boa maquia à conta dos tais burros reformados.
Foi o nosso burrico então parar às mãos de um camponês brutal que queria fazer dele, uma vedeta, um simples animal de tiro. Para o ensinar, dava-lhe quanta vergastada podia. Ai quanto sofrimento sobre o seu lombo marcado! Ai quantas lágrimas…que os burros também choram…só que baixinho, baixinho, quase às escondidas!
Mas a revolta fazia parte do seu sangue, por isso, roeu a corda que o prendia e partiu para além, para a liberdade que o chamava, onde a voz do Homem o não o magoasse.
Foi já em terrenos florestados que encontrou um cavalo no seu caminho. Admirou-lhe a figura e a história, pois este dizia-se nobre, senhor de muitas aventuras passadas com cavaleiros andantes e campeão de provas de hipismo à mistura. Parecia até ter o poder de adivinhar o seu passado e o seu futuro num simples relinchar e piscar de olho!
O cavalo dizia-lhe que ele podia crescer, crescer tanto que chegaria a ser do seu tamanho. E, qual é o burro que não quer ser do tamanho de um cavalo? Portanto respeitava-o, embora não o temesse. Aprendera já que as hierarquias não são para desprezar, sobretudo se, se anda sozinho nesta vida.
Quando encontravam outros animais, o velho cavalo excedia-se na sua exuberância, abanava as crinas e amesquinhava e insultava o burro à frente de todos. Isto, em nome de o fazer crescer, claro!
O burro começou então a pensar se devia erguer a cabeça e morder-lhe o pescoço, mas depois, pensou melhor e reconheceu que o cavalo era inteligente e sábio, e que apesar de tudo o podia ensinar, portanto deixou-se ficar.
Habituou-se a ouvir calados os relinchos do outro e zurrava para dentro; às vezes de raiva, às vezes de conformação. Pensava: se desmascaro o cavalo à frente dos outros animais das duas, uma, ou eu fico por mentiroso e ingrato pois, a fama dele é maior que o seu tamanho, se o deixo cair em contradição, desgraço o coitado do velho que morrerá de vergonha. Se isso acontecesse, acho que morreria também de remorsos. A vingança é um acto iníquo, próprio dos homens, principalmente se ela se exerce sobre quem já não consegue defender-se. Assim, como assim, prefiro esperar que o fim do cavalo venha serenamente. Afinal, eu que não sou tão sábio como ele, prefiro chegar a velho com o coração leve e sem nada do que me arrependa. De que valerá toda a sua sabedoria se o meu coração for duro e a boca falsa? De que vale ter fama em vida e enterrá-la com o corpo?
E cogitando, o burro, vai caminhando, sofrendo ás vezes, escondendo a verdade para poupar o cavalo. Quem sabe se ele acorda da sua cegueira e descobre os seus erros e seja capaz de baixar os olhos para si?!
A erva é verde e a água abundante, está certo! Mas mais do que a erva e a água, há um azul imenso por cima das orelhas! É por isso que o burro quer conservar o seu coração puro. Quer poder um dia, ao atravessar o prado extenso e plano dos seus sonhos, encontrar um lugar onde os burros e os cavalos sejam todos do mesmo tamanho.

Temo, o marujo

A Ilha do Conhecimento (5ª parte)

A escola das Artes do Espírito ficava num amplo vale, todo ele um jardim! Cada árvore, cada canteiro de flores, formava uma unidade que nos proporcionava experiências emocionais. Diversas esculturas orlavam as alamedas e praças. Os edifícios também tinham para lá da sua função, uma traça diferente de modo a fazer um todo com o ambiente em que se situavam. Aqui o mais importante era a linguagem artística e, ela tão eloquente que pessoas como eu, sem qualquer conhecimento se sentia por vezes intimidadas. Descobri portanto que ainda teria muito que aprender naquela escola.
Não havia aulas formais, aliás, como nas escolas anteriores. Mas em todo o lado, a qualquer hora, havia concertos, bailados, saraus de poesia, representações dramáticas. Tanto nas paredes dos edifícios como no interior deles, expunham-se obras de arte que iam da pintura à escultura, da ourivesaria à cerâmica, enfim, era um mundo de coisas belas que acerava o espírito e abria as brechas da alma que levavam o espectáculo da vida para dentro de nós. Inundei-me de prazer e bons sentimentos, havia vezes que chorava sem saber porquê, lágrimas quentes e saborosas que escorriam por excesso de sentimentos, outras, tinha que me tocar par ter a certeza que estava acordado e não num sonho.
Hugo desta vez acompanhou-me durante todo o tempo que ali estive e por essa razão uni-me a ele muito mais do que aos outros Seguidores. Aprendi a manifestar os meus sentimentos e afectos com ele, não era raro passearmos juntos abraçados. Era um amor único! Um amor feito de cumplicidade e compreensão. Ainda bem que não havia a medição do tempo como no meu mundo natural, ali, não havia urgência, apenas o desfrutar das maravilhas.
Aprendi a reconhecer a vibração da minha alma ao som da música, das palavras ou das formas. E, quando me senti saciado terminei a minha formação. Quando saí, o mundo cá fora tinha outro sentido, um sentido que percepcionava de um modo mais inteiro toda a minha consciência. A Porta da Sabedoria entreabrira-se para mim, deixara-me espreitar um universo melhor porém, não me estava destinado ainda transpor o seu limiar…
Regressei pois com Hugo à Ilha dos Seguidores. Só agora reparava que o meu ombro roçava o ombro do meu amigo, as minhas passadas acompanhavam as suas, com a mesma força, a mesma segurança. Tinha-me feito homem quase sem dar por isso. Jovem é certo, mas um homem!
O futuro aguardava-me sem medos nem inquietações, a maré cheia das experiências tomava-me e o ondear que sentia dentro de mim era apenas o fluxo e o refluxo do meu pensamento e emoções. Desaguava agora num mar gigante que se estendia para lá do horizonte visível, um mar onde as rochas eram as poucas certezas da vida, e elas emergiam, altas, poderosas e sábias!

quarta-feira, 11 de março de 2009

Vamos visitar o velho Almada Negreiros!



































































O suspiro de uma cadela



3. Estou toda azul. Sim, azul, aquela cor que cobre todo este pequeno mundo em que vivemos e que nunca sabemos exactamente o que quer dizer.

O azul é um mistério! Como pode uma cor pertencer às maiores extensões que conhecemos e não ser nada? Nada mais que o sobrepor de camadas incolores?
Como pode ela representar o conjunto do nada no todo, de forma tão intensa? Espanto-me, olho a minha pelagem e vejo-me azul, ainda por cima um azul que se retonaliza constantemente…
Esta cor, o azul, tem qualquer coisa de molhado, de fresco, como se nos mergulhassem em líquido. Mas na verdade, estou seca, sinto até o estalar eléctrico dos meus pêlos, ao friccioná-los! Além disso há muitos dias que não saio deste alpendre, (a dona da casa não deve estar cá, senão já me tinha enxotado daqui para fora) não tenho comido nem bebido, dormito aos poucos, um bocadinho de cada vez.
No entanto, estou azul, e como se uma força nova nascesse dentro de mim, apetece-me “dar um girinho” por estas bandas. Oiço uns chamamentos lá longe, mas estou indecisa, não sei se deva ir ou se fique aqui em terrenos seguros pois… esta cor estranha que me cobriu não é certamente tão discreta que não chame a atenção dos homens. Já não digo dos cães porque, para elas, basta-lhes o meu cheiro fêmeo, mas como estou colorida de azul, não tenho a certeza que o meu cheiro continue a ser o mesmo. Se calhar, ganhei o cheiro do mar, do vento, das florwes, eu sei lá!
Realmente há coisas! Só a mim é que me acontecem destas! Nunca ouvi ninguém dizer que um cão ou uma cadela, tivessem mudado de cor de um momento para o outro sem que o homem interviesse!
Espreguiço-me, estendo opostamente os meus membros, o mais que posso e, solto também o maior bocejo de que sou capaz. Tão longo e sonoro que, sinto admiração de mim mesma, fico impressionada. O melhor é esperar pela noite, assim será mais fácil passar despercebida, ninguém reparará na ridícula cor que tomei!
Pode ser que amanhã (será que há um amanhã) volte à simples condição de rafeira cuja pelagem é meio cinzenta, meio castanha, mas que não baralha ninguém. Gosto muito mais de ser vulgar, ter a sombra igual ao corpo, é que ser azul…é tão inquietante…além disso, quero a minha cor, mesmo que seja a mais banal de todas as cores, é a MINHA COR!

Escrever para crianças

Apesar de ter trabalhado tanto tempo para crianças continuo a ter alguma dificuldade em escrever para elas. Mesmo próximos, é difícil falar a mesma linguagem.
Como já disse aqui, a poesia foi sempre um instrumento que utilizei para chegar ao coração delas e isso deu frutos porque o lado emocional da poesia permite desenvolver também o raciocínio e a consciencialização dos valores.
No entanto, também fiz algumas incursões pela prosa. Começava muitas das minhas aulas com um conto. Às vezes um conto popular, outras, um conto inventado por mim. Registei alguns, não todos. E tenho pena de o não ter feito! Uma coisa é certa; até as coisas mais sérias podem ser ditas com uns pozinhos de magia. Todas as crianças apreciam a fantasia mesmo que tenham consciência da realidade. É o contexto lúdico que as estimula a aprender, por isso enveredei nesta área literária tão difícil. Contei-lhes histórias como outrora me contaram a mim. Sim, porque eu fui uma privilegiada nesse aspecto! Cada um, à sua maneira, todos os meus familiares tinha histórias para me contar, umas reais e outras fantásticas. O certo que é cresci no meio de contadores de histórias.
Portanto só me limitei a reproduzir o mesmo tipo de educação que tive em relação aos meus filhos e aos meus alunos e, podem crer, que não me dei nada mal!

Histórias de mim para ti ou Histórias mágicas de reais acontecimentos


Uma noite com as palavras

Aborrecida por não ter nada que fazer, sentei-me à borda do papel branco onde as linhas azuis se confundem e, esperei que o parágrafo se iniciasse.
Era noite. Acentos graves ouviam-se lá fora. Fora do pensamento. Abri a capa do caderno e as palavras assomaram tímida mas convictamente na ponta rolante da esferográfica. Convidei-as a entrar na página em branco e a tomarem o lugar que quisessem.
Artigos e pronomes pessoais disputaram discretamente um lugar à esquerda. O hábito é assim, torna-nos prisioneiros dos lugares! Aqueles ali não o sabiam, por isso tomaram essa atitude instintiva.
Os verbos, pelo contrário, acostumados a desdobrarem-se, foram mais flexíveis. Bem, sabiam que tinham que respeitar os tempos, os modos e o número, mas enfim, uma noite não são noites! Que o digam os substantivos!
Encheram por isso as linhas como se sentassem num estádio antes de um jogo importante e deliciaram-se completamente em jeito de gozo antecipado com a sua provocação, pois desta maneira, as palavras sobrantes, ligadas ao sentido da ordem, teriam que procurar na confusão, as suas posições. Situação que provocou momentos hilariantes e alguma confusão.
- Os verbos são terríveis! – Comentou um ponto de exclamação por entre um suspirozito de inveja.
- …e no entanto… - sentenciaram as reticencias. – São demasiado humanos, sentem e agem como eles. Nenhum de nós, pode confiar inteiramente neles… basta um pequeno deslize e transformam uma frase…
Os verbos tinham consciência da sua reputação, e compraziam-se com isso, realmente eram praticamente humanos, tirando algumas interjeições que os compreendiam muito bem e que às vezes até os substituíam, nenhuma, nenhuma outra palavra era capaz de dar tanto sentido à linguagem.
Estar ali à noite com as palavras, era diferente. Eu já calculara, mas confirmei à medida que via as palavras entrar, percebi então, como é que palavras curtinhas podiam ser mais poderosas que outras bem mais compridas.
Querem ver como? Eu conto:
A dada altura, um advérbio de mais de dez letras resolveu plantar-se com todo o seu tamanho quase no fim da linha. Estava à espera que reparassem nele, o que foi uma esperança vã! Ainda por cima, como todos têm a mania de terminar sempre em “mente”, quem é que ia olhar duas vezes para ele? A verdade, é que a falta de atenção o irritou. Revoltou-se, e até foi inconveniente com o maroto de um verbo, sentado no início da linha de baixo, que o olhava com ar divertido. Tanto esbracejou, tanto se esticou ao comprido que acabou encavalitado na margem e perder um “e”.
De outra vez, ocorreu um pequeno incidente.
Mesmo no meio da página, estava um daqueles substantivos epicenos que pudicamente escondem o sexo. Andavam todos embaraçados sem saber como o haviam de tratar, por nada deste mundo desejavam ofendê-lo. Zum zum, daqui, zum zum, dali, e eis que um pequeno artigo, humildemente constituído por uma só letra se foi sentar á sua beira. Um “Ah!” de alívio encheu os circundantes já esclarecidos.
Mas, vaidosos, vaidosos mesmo, são os adjectivos. Sempre com a mania de criticar as outras palavras, com a agravante de as rotular e de as quererem substituir em alguns casos. Têm a presunção que fazem parte de uma elite e não se dão com a maioria das palavras, acham que quando se associam é para fazer realçar a sua importância.
O mais engraçado é que os substantivos, suas vítimas principais, não se deixam escolher ao acaso, eles é os escolhem cuidadosamente. Coisa que não agrada nada a estes meninos de bem de todas as gramáticas do mundo. Ainda não perceberam que fazem parte de uma língua e que, para a enriquecerem têm que trabalhar em equipa e resolver as suas rivalidades.
Claro que estando eu, em tão viva comunhão com as palavras, aproveitei para as convidar a agruparem-se em frases, de modo a registar aquela noite diferente de todas as outras noites.

Telmo, o marujo

A Ilha do Conhecimento (4ª parte)

A estada na Escola do Corpo Físico ensinara-me a utilizar o meu corpo como uma ferramenta essencial para o desenvolvimento do meu ser, numa idade em que todos os rapazes se sentem desconfortáveis com o seu próprio corpo, aprendi a valorizar as modificações e a amá-lo tal como ele era.

Já a barba despontava no meu rosto quando Hugo, o Seguidor responsável pela minha educação, voltou a aparecer e eu soube que estava na altura de mudar para outra escola: a Escola da Mente Elevada. Esta situava-se no cume de uma montanha agreste, organizava-se numa espécie de labirinto, em blocos autónomos onde o branco era a cor dominante. Era uma escola que predispunha os alunos à concentração. Havia bibliotecas, laboratórios, anfiteatros para as conferências e, as paredes interiores, estavam repletas de reflexões escritas. Aqui procurava-se sobretudo descobrir as causas e os efeitos naturais e espirituais do mundo em que vivemos.
Fui recebido com a mesma solicitude com que havia sido recebido nas escolas anteriores. Nos primeiros tempos senti-me bastante ignorante, mas os meus companheiros ajudaram-me a ultrapassar esse sentimento e em breve me nasceu uma vontade séria de aprender o mais que pudesse.
Estudei, amadureci conceitos, formulei dúvidas e procurei respostas para elas. Parecia-me que crescia como se fosse feito de uma matéria elástica distendendo continuamente. Ao mesmo tempo adquiri um respeito por toda a humanidade e pela grandiosidade e complexidade do universo. Foi aí que me apaixonei pela sábia construção dos mundos e me tornei mais humilde. A humildade que ensina a encurtar os passos para que estes sejam firmes e seguros, a atingir o conhecimento sem excitação e foi com essa serenidade que aprendi a ser cúmplice da Criação consciencializando-me da presença do Grande Construtor.
Nessa altura entendi que o meu caminho passaria pela aprendizagem da medicina. Os Mestres concordaram com a minha escolha e animaram-me muito a conseguir uma formação bastante sólida nesta área. Os médicos aprendiam tudo o que se relacionava com vida, desde os aspectos fisiológicos, aos mentais e espirituais. Também aprendiam a utilizar e a fabricar os medicamentos naturais que ajudavam a recuperar a saúde.
Quando acreditei que estava apto pedi a Hugo que me viesse buscar pois, sabia que não estava destinado à Casa dos Seguidores. Quando ele chegou, foi com espanto que recebi a indicação de que me faltava ainda frequentar uma outra Escola: a Escola das Artes do Espírito. Hugo explicou-me que era necessário desenvolver também essa vertente do Conhecimento para que a minha formação ficasse completa. Acedi porque nunca me passou pela cabeça pôr em causa o plano educativo que os Seguidores haviam decidido para mim e, fiz bem!
Depois de termos trilhado um caminho traiçoeiro cheio de ravinas, desci a um dos vales. Ao longe, quando divisei as enormes construções do local senti um embargo na garganta e um turbilhão de emoções dentro de mim.

segunda-feira, 9 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


2. Aqui estou eu frente ao rio. Um rio que corre de então para cá e que ao contrário dos outros rios, se esfia na minha direcção como a querer voltar à nascente…

Não sei bem como vim aqui parar, nem tão pouco que lugar é este onde as plantas parecem ter invertido o lugar das suas raízes que, atiram ao ar, guardando ciosas nas covas escuras, as corolas encardidas!
Este é um lugar estranho! Tão estranho que eu tomo até as cores do seu pálido sol, como se ele se quisesse identificar comigo!
O rio não saltita de seixo em seixo como eu já vi em tantos lugares, não, ele parece engolir-se a si mesmo, numa lentidão tão grande que adormece nas margens esburacadas. E as águas? Nem são azuis, nem são verdes e nem são castanhas, antes têm a a cor suja da indefinição.
Estico o meu olhar para lá e não encontro o saltitar da rã nem o borbulhar de um peixe minúsculo. Não vejo mais que um monte de grãos de pedra arrastados pelo sugar débil da corrente.
Os espaços aquém e além das suas margens, são tão planos, tão rasos que o que está longe parece estar aqui e, o horizonte limita-se a uma linha inventada, rasgada e sem cor.
Não há desenhos de caminhos, nem ervas pisadas que indiquem passagens. Apenas tojos e espinheiros espalhados, aqui e ali ao sabor do acaso.
Mas eu cheguei até cá e não sei porquê!
O silêncio é tão grande que entra dentro de mim e aspira todo o resto da minha consciência. Não sei se estou perto ou se estou longe de alguma referência, mas sinto-me embalada no sono e transportada por esse espaço todo aí.
Neste momento, sou o nada. Sem tristeza e sem dor, sem alegria e sem entusiasmo, sei apenas que estou aqui onde nada me roça e sinto-me suspensa na vida…
Nada me servem os meus sentidos agora porque não existe um estilo que os acorde.
Muito francamente, acho que apenas a rebelde de uma interrogação se me atravessa na minha cabeça. Tenho a sensação que tudo evolou no ar, tudo aquilo que conheci antes e que fazia do código aprendido.
Gostava que este rio que observo me levasse à sua nascente onde sorve o seu caudal. Quem sabe se, dentro da escura madre, eu não encontraria a resposta?! Mas não. Nem consigo lembrar-me como deslocar-me. Não me esforço sequer, parece que de repente, me resumo ao olhar vagabundo sobre o rio que sobe, às terras adormecidas, à natureza enlouquecida. Parece que eu própria faço parte disto e, eu não sabia!
Queria adormecer profundamente e sonhar que existe na cidade um recanto qualquer que já me tivesse conhecido para ter saber se estou viva.
Se calhar preferia nem acordar desse sonho, porque esta realidade seria uma ilusão passageira! Gostaria de ouvir a minha voz a ladrar e a ressoar no ar, mas não, estou aqui esquecida de mim na cova do meu corpo sem sentir.
Rio. Rio leva-me contigo! Rio engole-me e deixa que eu cegue e ensurdeça desta vez! Rio, lava-me ou suja-me, tanto faz! Eu quero deixar de ser uma sombra parada no palco das tuas margens. Rio, rio, eu ainda respiro e não sabia!

O teatro


O teatro é uma das minhas paixões. Paixões? As paixões são entusiasmos passageiros que nos tomam de surpresa e nos enlaçam durante algum tempo em correria louca.
Teatro, para mim, é muito mais do que paixão, veio ter comigo na aurora da minha vida, cresci com ele, aprendi com ele a reflectir e a compreender o seu sentido.
Arte? Disciplina? Modo de estar? Pedagogia social e humana, encontro de realidades vestido de fantasia…às vezes doloroso, às vezes terno.
É uma forma de comunicar. Tão antiga como a própria linguagem. Imagino o caçador pré-histórico relatando os seus feitos junto dos companheiros; ele é herói, vítima, é o vento frio cortando a pele, o encontro com os rivais, tudo isto acompanhado de gestos e expressões faciais, de onomatopeias, de registos de voz variados.
Mais tarde, surge a coreografia de uma ou mais danças, a respectiva alteração do aspecto físico, o cerimonial perante a assembleia de seus iguais, notando-se já a interacção das personagens com o público.
Vem depois as grandes encenações, pensadas e realizadas pelos sacerdotes das diversas religiões organizadas, e, claro, a Grécia, Roma, a China, adoptando a arquitectura ao acto da representação. Vêm as máscaras, as luzes, a música, os efeitos especiais, acompanhando as narrativas especialmente escritas para a posteridade.
Daí para cá, pouco mais se desenvolveu, acrescentou-se apenas novas técnicas, novas filosofias e conceitos.
O teatro devia ser uma disciplina obrigatória nas escolas, digo-vos isso porque também fui professora. Com ele desenvolvem-se competências únicas; a linguagem oral, gestual e verbal, a colocação da voz, a estética, a descoberta dos autores, a noção do tempo e do espaço, o respeito pelo trabalho de grupo e pelo o outro, a pesquisa histórica, a contextualização dos acontecimentos e, também a receber a crítica e os elogios.
O teatro é isto tudo e o que mais quisermos absorver dele, considero-o a actividade artística mais completa de todas mas há tanta gente que não entende…

Telmo, o marujo

A Ilha do Conhecimento (3ª parte)
A minha ideia de escola em que um mestre declamava e os alunos repetiam, caiu imediatamente por terra. A primeira lição que aprendi foi que todos aprendemos uns com os outros. O Mestre-Tutor orientava-nos, aconselhava-nos e ajudava-nos a sistematizar, tudo o que íamos aprendendo.
Eu era o mais velho dos alunos mas não sabia escrever nem ler, num mundo em que o pensamento é que falava, a escrita tinha que ser forçosamente diferente. Baseava-se em símbolos que representavam ideias e não em sons. A princípio foi difícil porque esses símbolos eram muitos e eu, ainda não estava totalmente habituado a formular os pensamentos sem articular as palavras. Depois com o tempo e quase sem dar por isso, fui memorizando todos aqueles sinais e passei a ser capaz de registar o que fosse necessário. Aprendi também que ninguém era detentor de toda a escrita, esta desenvolvia-se consoante a nossa experiência e à medida que elaborávamos o nosso conhecimento.
Também compreendi logo que o mais importante era reflectir sobre os nossos actos ou atitudes. Por exemplo: se eu estivesse a preparar uma refeição, era questionado sobre a razão da escolha dos alimentos, a quantidade, a forma dos confeccionar, o modo como servir ou o efeito que teria no nosso corpo, mente e espírito. Desta forma eu abordava a matemática, as ciências, a ética e a arte. Nada era feito ao acaso. O Mestre-Tutor só intervinha se fosse necessário, mas a obrigação de perguntar e responder era nossa. Custou-me bastante adquirir esse hábito porque estava preso à ideia que os alunos eram ignorantes e só o mestre é que detinha o conhecimento.
Não estive muito tempo nesta escola, sei que cresci porque as minhas roupas deixaram de me servir e tive que fazer outras. Hugo apareceu um dia e conversou com o Mestre-Tutor sobre o meu progresso parecendo satisfeito.
Conversámos pouco mas soube que ele me iria levar para outra escola noutro local da Ilha, a Escola do Corpo Físico.
Deslocámo-nos a cavalo pois as distâncias entre as escolas eram bastante grandes. Pelo caminho Hugo explicou-me que a Escola que eu iria frequentar dar-me-ia a consciência e a importância do meu corpo físico, pois é através dele que nos expressamos e experienciamos a vida.
Quando chegámos percebi que passaria a viver com os meus companheiros sem qualquer Mestre-Tutor. Partia-se do princípio que éramos suficientemente crescidos para assumirmos a nossa aprendizagem. Havia Mestres mas estes percorriam o espaço e só agiam quando solicitados. Ali, rapazes e raparigas, faziam exercícios físicos que predispunham ao relaxamento, à expressão corporal e a um crescimento harmonioso do nosso corpo. Dávamos muita atenção à higiene, alimentação, vestuário e fabricação de objectos. Cultivávamos plantas e árvores que serviam para nos alimentarmos ou tratarmos as nossas raras doenças. Pescavam-se peixes e moluscos nos pequenos lagos e ribeiros, fiava-se, tecia-se e confeccionava-se a nossa própria roupa e calçado. Ninguém obtinha nada sem esforço pessoal. Era verdadeiramente uma vida sã. Entre nós transpirava-se alegria e amabilidade, aspecto esse muito importante pois aprendemos que mesmo não havendo amizade, era obrigatório ter para com todos delicadeza, generosidade e simpatia.
Foi pois, sem dificuldade que aprendi que ao cuidar do meu corpo, cuidava da minha mente e do meu espírito. Que o alimento e o conforto ajudavam a adquirir condições para o meu desenvolvimento interior e que nada, mesmo nada, do que pudesse considerar trabalho, prejudicava as outras aprendizagens. Pelo contrário, percebi que o trabalho relacionava o homem com o meio e ajustava-o à grande harmonia da vida. Foi muito gratificante compreender que tudo o que eu produzia era fruto da minha inteligência e habilidade. Sobretudo aprendi a distinguir trabalho de escravidão e que a preguiça proporciona sentimentos de angústia e inferioridade, a Escola do Corpo Físico ensinou-me não só a cuidar do meu corpo mas também, do Grande Corpo Colectivo e Cósmico.




domingo, 8 de março de 2009

O suspiro de uma cadela


1. Mordo a ponta do meu rabo enrolada no corpo nervoso e, dento o pêlo hirsuto e amargo, rasgando-me calada.

O vento expulso dos largos pelas ruelas e becos, arranha-me as orelhas e os olhos com a poeira que traz, chego mesmo, a inspirá-lo, desprevenidamente.
Há nas pedras da calçada, enodadas de canseiras, umas poçazinhas lodacentas onde me arrasto para diminuir o frenesim que sinto.
Não consigo já ganir as minhas dores. Elas tornaram-se tão materiais que me perfuram a pele como carraças. Profundamente.
Já não me incomodam os pontapés e as alguidaradas de água fria. Limito-me a encolher sob a soleira de uma porta envelhecida.
Já não farejo por entre as fitas de plástico dos talhos, a benesse de um osso duro de roer.
Fico aqui, como não quer a coisa, a ver se reparam em mim.
Dobro o cachaço ante aqueles que rosnam altivos e, passo indiferente por outros que também se encontram nesta volta da vida.
Colecciono suspiros no peito como quem compõe um colar de angústia. Um colar que aperta o pescoço e me deixa entorpecida.
Nem o assédio de um macho pouco exigente me animam já. Como se o cio fosse coisa longínqua… e, se um deles se serve, deixo simplesmente que aconteça, sem ruído, sem ofegação.
Eu sei que há um bairro do outro lado da cidade onde os cães têm vida de luxo, que são escovados, perfumados, passeados por donos pervertidos ou carentes de afecto. Eu sei que há ainda para lá da cidade, um baldio onde as ervas são muitas, os ratos e os láparos acessíveis à caça, onde se corre à vontade e se pode adormecer de barriga para o ar.
Mas para viver no bairro é preciso coleira, às vezes, até açaime. E, para viver no baldio, é preciso andar, andar muito, até lá chegar. E eu, estou velha!
Nunca tive outro dono senão eu própria, nuca dormi sem ser ao relento ou num qualquer coito mal cheiroso. E, já não tenho forças. Não, não tenho, para procurar o baldio e conquistar o lugar.
Prefiro ficar por aqui, onde cada esquina tem um sinal odorado por mim. Prefiro rastejar nesta lama fiel que partir à aventura.
Um dia, eu sei que é a única certeza, estender-me-ei numa berma, esticar-me-ei de ventre inchado, até que o carro municipal me leve dentro e me meta na pira que tudo purifica e alimenta.
E então, tornar-me-ei pó. Um pó fino e cinzento que se espalhará nos ares e entrará nas narinas dos que o respirarem. Nesse momento, acolher-me-ão dentro de si, nessa altura, sem esforço, farei parte das brisas e chegarei a todo o lado, sem medo, sem cansaço, sem lutas. O meu rabo e a minha boca, deixarão de ter sentido porque não terão forma e passarão a ser apenas a existência que a minha imaginação lhe queira dar.
Também não precisarei de um nome, porque terei apenas a consciência de que existo independentemente dos sentidos dos outros.
Ah sim, esse tempo virá! E eu, abocanhá-lo-ei mais depressa que hoje, abocanho o meu rabo!

Que bom rever Matilde!


Imagens de Chagall






Revi Matilde. Uma mulher que não parece existir aqui. Que é feita de algodão doce que se desfaz em ternura e deixa a sua doçura escorrer na forma da sua poesia.
Conheci Matilde há trinta e quatro anos, está igual, etérea, suave, com os mesmos olhos escuros que perscrutam o mundo dos homens e das crianças sem censura, apenas com compreensão. Toda ela é um sorriso de delicadeza que nos torna pequenininhos…
Se hoje continuo a escrever poesia, é porque recebi também dela, naquele tempo, o incentivo para o fazer. E, se como mãe e como professora elegi a poesia como veículo de educação, foi porque aprendi com pessoas como ela, que o meio mais eficaz de chegar ao coração das crianças é o afecto e o respeito. Quando se age assim, abre-se um canal entre nós e as crianças que permite que o ensino e a aprendizagem se façam do modo mais simples do mundo.
Matilde nunca foi formalmente minha professora, encontrávamo-nos nos corredores, escadas ou bar da escola, era aí que trocávamos breves palavras e nos entendíamos.
Nem sempre associamos os artistas à sua obra, às vezes há como uma bipolaridade neles, são uns quando criam, são outros como cidadãos. Mas Matilde, não. Ela é a sua própria poesia! E, embora a sua frágil figura o não demonstre, ela não é de modo nenhum alheia às realidades da nossa sociedade. Escolheu um caminho: defender e lutar pelos direitos das crianças. Essa tem sido o mote da sua vida e tem dado muito mais do que a sociedade portuguesa lhe reconhece.
Gosto de Matilde, da sua voz feita de arrastos e pausas, de palavras escolhidas ditas em modo de improviso, gosto da música dessas palavras que entram dentro do nosso espírito e nos fazem saltar os melhores sentimentos para fora de nós.
Foi bom rever Matilde! Porque cada vez que estou com ela através de suas poesias, fico mais doce e com vontade de ser melhor.
Obrigada, Matilde. Ainda bem que vives neste mundo de arestas!

Telmo, o marujo

A Ilha do Conhecimento (2ª parte)

Como já referi a Ilha do Conhecimento ficava um pouco mais afastada das outras, era também a mais acidentada, de picos acerados e rocha cinzenta-azulada. Quando aportámos, num porto artificial que se ligava à Ilha por uma ponte de madeira, pude reparar que toda ela, estava salpicada de conjuntos de edifícios muito brancos distantes uns dos outros mas, ligados entre eles por estradas serpenteantes. Aqui e ali podia-se no entanto ver grandes zonas verdes que mais tarde vim a saber tratar-se de florestas e bosques. Esperava-nos um velho com três cavalos pequenos e robustos. Eram cavalos de montanha, habituados a trotarem por veredas estreitas e a escaparem das ravinas. Não eram muito graciosos, mas podíamos verificar a sua resistência e docilidade. Hugo e eu cumprimentamos o velho e, ele deu-nos um animal. O de Hugo era castanho e o meu branco com grandes manchas amareladas. Montámos e seguimos o velho guia sem grandes conversas.
Durante muito tempo espiralamos as montanhas em silêncio, eu bebia a paisagem com uma grande ansiedade, sabia que iria viver ali durante o tempo que fosse necessário para a minha formação portanto procurava sinais que me augurassem o futuro. Quando nos aproximámos do primeiro conjunto de casas, desmontámos e o velho foi tratar dos cavalos combinando com Hugo que depois o viria buscá-lo para o levar de novo até ao porto.
Antes de entrarmos, Hugo explicou-me então que na Ilha havia quatro escolas; a Escola do Corpo Físico, a Escola da Mente Elevada, a Escola das Artes do Espírito e a Escola dos Seguidores. Os alunos como eu, não podiam frequentar de imediato essas escolas, primeiramente tínhamos que aprender as regras, os ensinamentos básicos e desenvolver todas as nossas capacidades e a personalidade de modo a poder escolher com segurança a área de estudos seguinte. Não íamos à escola, porque vivíamos com um Mestre que cuidaria da nossa educação, os companheiros com quem conviveria seriam também participantes na minha aprendizagem, tal como eu seria deles. Achei muito estranha aquela forma de escola mas mais interessante daquela que frequentara no soturno vão da Igreja da minha terra natal.
A grande maioria dos habitantes das Ilhas fazia apenas esta preparação e seguia para as respectivas famílias onde aprenderia as actividades profissionais que lhes agradava, só aqueles que demonstrassem ser especialmente dotados para as áreas que cada Escola desenvolvia, é que ficavam na Ilha do Conhecimento. Ninguém pagava nada pelos seus estudos, todos tinham a possibilidade de prosseguir os estudos desde que fossem capazes.
Fiquei aflito de repente, comecei a ter medo de não corresponder às expectativas dos meus amigos Seguidores. Hugo, afagou-me os cabelos e disse-me que não me preocupasse, que apenas me deveria esforçar em aprender o melhor possível o que me ensinariam, que aos poucos eu entenderia qual era o meu caminho.
Nesse momento, apareceu o Mestre-Tutor com quatro rapazes e três raparigas. Cumprimentaram Hugo e receberam-me com carinho. Entretanto o guia chegou e Hugo despediu-se de mim enquanto eu segui os meus futuros companheiros.