domingo, 28 de março de 2010

O Caminheiro


Vaidades



Como é estranho o sucesso dos homens! Do baú tinha nascido o reconhecimento material e social da sua vida. E, enquanto seu nome era falado ele ia calando cada vez mais o segredo da sua caminhada.
O regresso às obrigações do trabalho tornara-o a pouco e pouco insensível, sobretudo em relação ao seu mistério íntimo.
No tempo em que falara do seu baú ainda fora capaz de tocar os sentimentos, mas agora, que escrevia sobre os baús dos outros, a memória deles era filtrada por uma mente racional e fria.
Vendia bem as histórias. O público prefere histórias vulgares que apenas rocem as suas próprias histórias. Nada de muito profundo...
O tempo antes não tinha dimensão, agora perdia-se escoado nas alíneas da agenda. Como é estranho o sucesso dos homens!

Naquela noite quando chegou a casa, encontrou sobre a secretária um telegrama. Suspirou, tirou o casaco, desapertou o nó da gravata e por fim abriu-o e leu-o: PAI FALECIDO ESTA MANHÃ. Nunca a morte lhe tinha sido tão próxima. Com uma espécie de desconfiança e os dedos incertos carregou nas teclas do telefone.
Foi a mãe que o atendeu.
- Mãe?
- Filho!
- Só o soube agora. Acabei de chegar... Como foi?
- Naturalmente, meu filho, suavemente...
- Mas...assim? Estava doente?
- Não. Porque é que há-de haver razões para a morte? Morre-se e pronto!
- Há tanto tempo que não estava convosco!
- Mas nós estivemos sempre contigo!
- Mãe?
- Sim?
- Amanhã estarei aí.
- Esperarei por ti.
Pousou o auscultador. Custava-lhe a acreditar... sentou-se no sofá e ficou muito tempo sem conseguir ordenar as ideias. As imagens do pai assomavam constantemente. Parecia-lhe ainda ouvir a voz dele, levemente arrastada, e sentir, sentir as mãos de pele áspera de encontro ao seu rosto, cheirando a coiro. E ele que abominava o cheiro do coiro! Agora entrava-lhe pelo o nariz e arranhava-lhe a garganta, e ele gostava!

Só as lágrimas é que não vieram ter com ele, teimavam e negavam-se a correr, ou então, corriam dentro dele como lava quente queimando-o por dentro.

Logo que amanheceu, comunicou a um colega o sucedido, e preparou-se para sair. Pegou numa pequena maleta de coiro e enfiou lá para dentro alguma roupa juntamente com os objectos de higiene. Depois ficou parado algum tempo remirando-a poderia ter sido feita pelo pai, mas tinha uma marca estrangeira e custara bastante dinheiro. Porque nunca pedira ele ao pai que lhe fizesse uma mala como aquela?

Fez-se à estrada. Agora já não andava de mochila às costas. Conduzia um bom automóvel e seguia pela estrada asfaltada em grande velocidade apesar do especial cuidado que esta exigia. Admirou-se consigo mesmo. Estava tão calmo e seguro que aparentava frieza. À medida que se ia aproximando mais rígido parecia. Porque não conseguia chorar? Como se comportaria na hora do funeral? Acusava-se intimamente da pouca assistência que lhe dera. Quem teria tratado de todas as formalidades? A mãe? Apesar da idade continuava enérgica e cheia de sangue frio. Mas... naquela hora de perda...amando o marido como só ela fora capaz. Teria tido coragem? Talvez algum dos vizinhos?... Quem sabe? Um dos seus irmãos?... Achava pouco provável que algum tivesse essa iniciativa. Era a ele que lhe competia a tarefa, a mais ninguém, afinal era seu pai, não era o pai dos seus irmãos.
Quando entrou no prédio, a D. Mingas nem o deixou tocar à porta, era a vizinha do rés-do-chão, abraçou-o a chorar comovidíssima e comunicou-lhe que o corpo estava na capela mortuária da igreja do bairro. Ele agradeceu, desembaraçou-se como pode do abraço e dirigiu-se para lá.
O cheiro adocicado e crepitante das velas misturado com o perfume das flores irritaram de imediato as suas narinas obrigando-o a uma série de espirros ruidosos. A mãe reconheceu-o e veio ter com ele.
Olharam-se com ternura, nos olhos, e ampararam os corpos um no outro, sem se apertarem, apenas de forma que eles confirmassem a materialidade da sua existência.
A mãe vestia de negro com a mesma naturalidade com que vestia qualquer cor, talvez estivesse um pouco mais pálida, mas de resto, parecia tranquila. Ela dando-lhe a mão, levou-o até a galeria dos amigos e parentes afastados sentados cerimoniosamente nas altas cadeiras de espaldar. Todos aqueles rostos pareciam esculpidos de conveniência, nem um só gesto desajustado, nem uma só expressão menos correcta. Nada fugia às normas convencionais.
Sem dar por isso deixou escapar um leve sorriso, não era um sorriso de alegria, claro! Mas um sorriso nervoso de quem não está habituado aqueles cenários.
Depois, com naturalidade, dirigiu-se à urna do pai.
Era de madeira escura e pesada, forrada de cetim azul claro. À sua volta uma moldura de flores torneava-lhe a cabeça e o corpo. Poucas vezes tinha visto o pai sem óculos e estremeceu ao notar como eram grandes as semelhanças entre si e ele. Era como se estivesse a presenciar o seu próprio futuro! O pai estava vestido com o melhor fato que tinha, o cinzento escuro, uma camisa imaculadamente branca e uma gravata azul escura e branca que ele lhe oferecera num Natal distante. Aquele não parecia ser o pai, estava habituado a vê-lo com roupa de trabalho, sobretudo com o enorme avental de couro enegrecido. Aproximou-se um pouco mais e estendeu a sua mão direita sobre as mãos dele que estavam cruzadas no peito. Sim. Aquelas eram as suas mãos! Mãos que não souberam mascarar a vida e que traziam com elas as cicatrizes da sovela e do fio. Mãos endurecidas e, no entanto, tão delicadas, tão cheias de carinho.
Em pensamento dedicou-lhe as palavras de amor que nunca lhe expressara claramente, pediu perdão pela negligência que tivera nos últimos tempos e viu-se de repente a confidenciar-lhe os últimos projectos. Tudo em silêncio! Depois sentou-se ao lado da mãe e passou-lhe o braço pelos ombros. Ficaram quietos, calados, sem lágrimas nem inquietações.
Uma hora depois chegaram dois dos seus irmãos com as respectivas mulheres e filhos. Nunca haviam sido muito chegados ao padrasto, mas soube-lhe bem que tivessem vindo para confortar a mãe. Desculparam a irmã, dizendo que ela vivia longe demais e o marido estava fora, mas traziam da parte dela palavras sinceras de condolências. A mãe abraçou-os e parecendo quase feliz.
Depois do funeral propriamente dito, os irmãos chamaram-no. Era a primeira vez que o tratavam como irmão verdadeiro, e a questão principal era saber exactamente o que deviam fazer com a mãe, pois com a idade que tinha já não convinha ficar tão sozinha. Ele nunca pensara nisso, por isso respondeu que o melhor seria falar com ela logo que fosse possível. Talvez aquele momento não fosse o ideal para o fazer. No entanto não acreditava que a mãe, sempre tão independente, quisesse ficar em casa de algum deles. Os outros desculparam-se imediatamente com o facto de terem casas demasiado pequenas e, provavelmente porque a sua solidão seria maior pois, as respectivas mulheres trabalhavam também, e ela desse modo, ficaria sem ninguém durante todo o dia. Mas o mais grave seria o desenraizamento. Ela vivera quase toda a vida naquele prédio, naquele bairro, naquela cidade. O mais sensato seria que ele, solteiro, e um escritor famoso, com melhores condições económicas do que eles, pudesse assumir o encargo financeiro de manter alguém de confiança junto dela.
Teve vontade de os mandar passear, mas conteve-se. Descansou-os, dizendo que sim, que assumiria esse compromisso com toda a alegria, que ficassem tranquilos quanto a isso. Percebeu os seus suspiros de alívio e nem sequer ousou criticá-los.
A mãe voltou para casa com os vizinhos, ele precisava de espairecer um bocado e sobretudo preparar a conversa com ela de modo a não a magoar.
Quando entrou no carro sentiu uma enorme necessidade de rolar pela cidade sem rumo definido. Parou por fim na parte alta e sem saber como, rompeu num pranto. Não chorava a morte do pai. Uma vida inteira de generosidade e pureza. Chorava o desmembrar do casal feliz que os seus pais tinham formado.
Esgotado pelo esforço do choro, reclinou a cabeça e fechou os olhos. Sentiu o cheiro a cabedal, o afago no alto da cabeça que o pai gostava de lhe fazer, olhou para o lado. Ali estava ele, de camisola azul e calças cinzentas de algodão. Estava a rir. Parecia estar a fazer pouco dele. Quis dizer-lhe alguma coisa mas a voz embargou-se-lhe. Não teve medo mas sentiu-se atrapalhado pela presença etérea do pai.
O velho piscou-lhe o olho como se dissesse: - Desta já me escapei! – E ele riu.
Com mais segurança perguntou-lhe:
- E agora? E a mãe?
- Agora nada! Vou viver a minha verdadeira vida! A tua mãe? Bom, ela é forte, saberá encontrar pensamentos de conforto. É uma grande mulher, sabes?
- Sei.
- É contigo que me preocupo, meu filho.
- Comigo?
- Sim. Procuras sempre fora o que tens dentro de ti. Arriscas-te a perder no meio da ilusão que criaste para ti. Tens fama, tens sucesso, serás cada vez mais solicitado para te integrares nesta sociedade de bem estar material. Dessa forma irás perder tudo. Tem cuidado, não te desiludas a ti próprio!
- Que hei-de fazer, meu pai?

O pai esfumou-se sem palavras.

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