domingo, 28 de março de 2010

O Evangelho de Íris


Sofia


O conhecimento é o conjunto de saberes, mesmo daqueles que ainda não pertencem ao nosso universo.





O recorte do litoral neste lugar é de falésia. Ela estende-se a dado momento por uma faixa estreita e prolonga-se pelo mar dentro. No seu limite está um farol. Tão velho e sólido que o mar apesar da sua fúria o respeita. O vigia luminoso passa de geração em geração sempre na mesma família. A solidão é um vício. O caminho rochoso é batido violentamente pelas águas que ora abrem fendas, ora o cumulam de areia e lodo como presentes.
O farol é um lugar de romagem obrigatório para Íris. Ela sabe-o e sabe também que só ela será protegida na sua passagem e, mesmo assim...
Pede então ao grupo que a acompanhe que fique em terra esperando. Que aguarde e vele. Pede ainda que aproveitem o tempo para sentir a vibração divina da voz das águas e reflictam um pouco na existência do horizonte.
A sombra da tarde já ilude o olhar, confunde os vultos e torna mágicos os elementos. A distância não é longa mas apenas pode vislumbrar a silhueta de quem a espera à porta.
É Sofia, aquela que rege o mundo das trevas através da luz rotativa que se espalha em raios de claridade. Sofia que adivinha já o seu encontro e que põe sobre os seus olhos a mão em pala como forma de dirigir a sombra até si.
Quando as duas se encontram não são precisas palavras. São os seus pensamentos que falam, se encontram e reconhecem.
As mãos tocam-se. Certificam-se de que é material a sua presença.
Quando entram na construção cónica, sóbria e sólida, sobem até à cúpula e esperam caladas que a primeira estrela anoiteça o céu.

- Esperei por ti toda a minha vida, mesmo antes de saber que vivia...-sussurra Sofia confidente.
- Estive sempre aqui. Mesmo sem saber que era aqui o teu lugar - responde Íris no mesmo tom.
- No entanto é longa a jornada que tens feito!...
- Mais longa será o resto dela...
- Íris, como podes ser filha da mulher se a tua semente veio de além, onde é impronunciável o nome? És semente divina, Íris?
- Todas as sementes são divinas, todas as mães são mulheres. São elas que dão corpo e forma à existência. Sem elas a divindade ficaria eternamente no seu casulo adormecida.
- Eu também sou semente divina! Lembras-te? Lembras-te quando antes nos fundíamos e éramos aspectos diferentes de uma mesma identidade? Lembras-te como éramos antes de sermos como somos?
- Lembro Sofia. Lembro. Mas foi necessário separarmo-nos para nos reencontrarmos. Eu vim trazer a Palavra e ela só pode ser dita através da voz e do gesto, de modo a que todos a compreendam. Tu conheces a Palavra porque fazes parte dela como eu. Mas...eles, os homens, continuam a procurar-nos mesmo depois de nos conhecer.
Mas foste concebida sem acto carnal enquanto, bem, nasci de um homem e de uma mulher.
- Foste mais feliz do que eu! Nasceste do amor entre dois seres iguais. Foi o amor que te ungiu e nada há de mais belo neste lugar que o amor entre um homem e uma mulher que dão forma e corpo à semente adormecida!
Eu, fui a escolhida. Tornei-me mensageira, nunca estive em nenhum lugar nem nunca saí de algum lugar. Sou como um arco, uma ponte, que une as margens e não as toca...
- Íris, tu sofres?
- Tudo o que é matéria sofre, porque ela limita o espírito e torna espessas as ideias. O meu sofrimento faz parte do Inominável. É ele que torna o conhecimento visível e claro aos homens.
- Eu não sofro...
- Não. Tu vives na solidão desde que nasceste. E quem tem como gémea a solidão não sofre. Tens todo o tempo para ti. Quando partirmos e nos reencontrarmos, quando a nossa existência se fundir de novo, verás como cada uma terá alargado a sua verdade. E como seremos grandes depois!
Sofia e Íris esperam a madrugada comungando do crepúsculo. É necessário voltar de novo a estar juntas.
Íris regressa para o pé das companheiras. Elas dormem um sono profundo. Íris deixa escapar, leve, uma censura:
- Então não foram capazes de ficar acordadas ao menos uma hora?

É preciso estar de novo com Sofia. Íris deve voltar ao farol. Por isso separa-se do grupo na tarde do dia começado e avança pelo cabo pedregoso. O sol baixo que ilumina a sua imagem pinta-lhe a aura de dourado.
Juntas, Sofia e Íris, assistem agora ao declínio do dia, quando o primeiro luar as toca, voltam a retomar o diálogo do dia anterior.
- Sofia, o tempo ainda não está esgotado. Faltam ainda fios com que é necessário tecer a corda que rebocará a humanidade. Ainda falta percorrer parte do arco circular deste caminho. é por isso que estou aqui!
- Não compreendo Íris! Como pode a divindade enviar-te se os homens continuam sem ouvir? Todos os que vieram antes de ti tiveram dois destinos: ou foram imolados ou foram idolatrados. Qual é o teu destino Íris?
- Já te disse Sofia, o meu destino é a passagem. É deixar no meu rasto o espectro luminoso da Palavra. Somente isso! Será a última prova, a última fase da sublimação do meu ser.
- Também eu estou no último degrau, também eu me preparo através da meditação para tornear o patamar e entrar no corpo sublime da estrela-mãe. No entanto não tenho precisado de me liquefazer em dor...
- Há sempre formas de atingir esse momento; tu fá-lo através da meditação, eu, através da acção. Ambas são legítimas e seguras. No entanto ambas são incompletas. Por essa razão te reencontro. A partir de agora teremos que caminhar juntas, para conseguirmos alcançar o nosso objectivo. Só quando nos completarmos, poderemos terminar. Vem Sofia, está na hora.
- Não posso deixar de sentir receio pelo que vou encontrar. Há muitas histórias da História da humanidade que têm chegado até mim através dos ventos e das marés. Falta-me a coragem, confesso, Íris, de avançar por esse caminho. Há muito que esqueci a provação !
- Afasta as tuas dúvidas minha irmã ! Para lá do farol estão aquelas, que com as suas virtudes, representam o melhor da humanidade ! São elas que me têm amparado e incentivado até aqui. Continuarão a fazê-lo.
- Fá-lo-ão por ti, Íris, não por elas próprias !
- É verdade...mas quando partirmos, entrelaçarão as suas forças e continuarão a arrastar os homens. Vem Sofia, está na hora !
- Espera. Espera só mais um pouco. Deixa que amanheça e partiremos.

Outra manhã começa. Íris e Sofia trazem consigo a luz do farol que encandeia e prostra o grupo. É necessário que Íris as sossegue:
- Não temais amigas. É apenas a luz que transborda. Logo vos habituareis a ela. Esta é Sofia, minha irmã. Também ela percorrerá a partir de agora o que falta.
Não temais. Esta luz não vos cegará, apenas abrirá aos poucos os vossos olhos. Logo sereis capazes de a seguir e vós mesmas, depois de nós a transportareis, iluminadas.
Não temais. Não temais.

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